Em 1985, Carmo Neto dava um impulso significativo à narrativa ficcional angolana com a publicação de “A Forja”, uma novela que marcou a sua entrada na plêiade dos escritores mais representativos da sua geração.
À época, até final dos anos oitenta, surgiu uma prolífera produção literária, caracterizada pela publicação de títulos bibliográficos referenciais da literatura angolana dos quais destacamos “Mayombe”, 1980, “O cão e os Calús” e “Yaka”, 1985, de Pepetela, “A Renúncia Impossível”, edição póstuma de Agostinho Neto, 1982, “Ritos de passagem”, 1985, Ana Paula Tavares, “No caminho doloroso das coisas”, 1985, do poeta Lopito Feijóo, e “Meu Réu de colarinho branco” de Carmo Neto, que deu à estampa em 1988.
Carmo Neto, numa declaração inédita, fez um depoimento sobre a complexidade editorial actual e o contexto em que publicou “A Forja”, sua estreia literária, “naquele tempo ainda havia livrarias em todo país. Vivíamos mergulhados na litigância aos novos desafios estéticos e formais da literatura. O local não perdeu de vista o global, mesmo que falemos de uma literatura “angolanizada” a marca do universal está lá no texto. Razão porque quando escrevi “A Forja”, no século passado, a personagem principal já avisava que muitos cidadãos tinham mais fôlego para correr atrás da fortuna financeira, sem suor. O teatro andava tão exposto que a personagem do texto ou livro seguinte passou a ser “Meu réu de Colarinho Branco”. Actualmente, os editores ganham novos motivos para celebrar contratos de edição e reedição de obras de autores, os livreiros disputam um mercado sem apoio do Estado, os órgãos de comunicação social vão sendo forçados, sem motivação, a elevar as suas pautas aos eventos literários. Na verdade, os leitores vão sendo desafiados a conhecer esse novo panorama que nos traz novos autores e o governo não dá vida a uma lei aprovada há mais de dez anos pela Assembleia Nacional sobre a promoção do livro e da leitura. É ridículo!…Razão porque embora tenhamos adquirido mais fôlego para tematizações, perdemos na edição, na produção, na distribuição e, como é lógico, na expansão da literatura angolana. Vivemos um período de graça na literatura angolana, não só na quantidade do que se produz, mas, fundamentalmente, na qualidade artística, e desafiamos qualquer estudioso, editor ou leitor estrangeiro a provar o contrário”.
Na verdade, os referentes textuais da escrita de Carmo Neto atravessam vários períodos temporais e temáticas diversas, ou seja, os nomes, os ambientes e as figuras que fizeram época, “Kota João Faztudo” em “Degravata”, são disso exemplo, daí que seja legítimo afirmar que a sua obra é um exercício de intelectualização da memória de factos, muitos dos quais vividos na sua infância, sempre com a dominante ficcional.
Carmo Neto, para além de ter tido contacto com os livros do escritor Jorge Macedo, através do seu pai, aprendeu kimbundu com a avó que dominava, igualmente, a língua portuguesa, de quem aprendeu muitas estórias da tradição oral, factos que foram úteis para a formação da sua personalidade
Filiação
Filho de Francisco António Luís Neto, mais conhecido por Chico Cunga, filho do falecido soba Cunga do Luau, morto pela PIDE, em 1961, em Malanje, e de Teresa João Sebastião da Costa, modista de profissão, António Francisco Luís do Carmo Neto nasceu no dia 16 de Outubro de 1962. O pai também era tratado por Chico Bonito, pelas mulheres da época, e Dr. Sarmento pelos colegas do Quéssua. Funcionário público de profissão, chegou a exercer o cargo de director do Instituto de Algodão de Angola,em Malanje, e dos Serviços de Geologia e Minas, em Luanda.
Livros
Carmo Neto lançou o seu primeiro livro “A forja”, em 1985, seguindo-se, “Meu Réu de Colarinho Branco”, 1988, “Mahézu”, 2000, “Joana Maluca”, 2004, e “Degravata”, em 2007. Os contos de Carmo Neto integram diversas antologias publicadas em Angola e no estrangeiro, estando traduzido em inglês, francês, árabe e espanhol. “Oxalá cresçam pitangas, literatura de Angola, um livro bilingue” é o título de uma sugestiva colectânea de textos poéticos e ficção narrativa, em língua portuguesa, traduzidos em alemão, que inclui poemas e contos de treze autores de diversos períodos, e gerações literárias. A antologia inclui escritores consagrados como Agostinho Neto, com o texto, “Poema”, e Arnaldo Santos, com o “Desterro do ambaquista”. No domínio da ficção narrativa, a colectânea inclui ainda Zetho Cunha Gonçalves, com o conto, “O inferno e a morte na palma da mão”, Tuzuary Nkeita, com “A caixa negra”, Roderick Nehone, “Catador de bufunfa”, Isabel Ferreira, “Xaimita zungueira-fina”, Sónia Gomes, “A filha do general”, Amélia Dalomba, “O mar no signo do laço”, Arnaldo Santos, “Tesouro de quianda”, João Melo, com “O engenheiro nórdico” e Carmo Neto com o conto, “Ah! Jeremias”.
Estilo
Numa entrevista concedida ao jornalista, Aguinaldo Cristóvão, Carmo Neto caracterizou o seu estilo nos seguintes termos: “Sou uma pessoa bastante jovem na escrita para definir o meu estilo como acabado. A realização literária é um exercício de liberdade. E esta liberdade é ilimitada nos termos das regras literárias e acredito que ela pode ainda assim escalar outros rumos estilísticos desde que melhores que os anteriores escalados. Porque qualquer artista sonha sempre mais, fazendo o maior uso dos mecanismos artísticos. Usando melhor, por exemplo, as figuras de estilo e também reinventando textos. A corporização da ficção pode ser feita de diferentes formas. Por exemplo, nós ainda não temos um caso de prosa poética propriamente dita. É uma proposta por explorar. Há vários experimentalismos que já vou notando nas pessoas. Há o realismo mágico. Há outros caminhos como o estilo do romance inglês que os outros começam já a explorar, sem nunca menosprezar o valor literário da obra”.
Funções
Contista, jornalista, advogado e cronista, Carmo Neto é conselheiro do Comandante Geral da Polícia Nacional, membro da Ordem dos Advogados de Angola, da União dos Jornalistas Angolanos e foi Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos. Exerceu a função de director da Revista Militar das Forças Armadas Angolanas, durante os anos de 1980, primeiro por eleição e depois por nomeação. Foi fundador do Jornal Desportivo Militar.
Excerto do conto
“Meu réu de colarinho branco”
O conto “Meu réu de colarinho branco” foi publicado em primeira mão durante os anos oitenta no Jornal “Angolé, Artes e Letras”, publicado em Portugal, dirigido pelo escritor Adriano Botelho de Vasconcelos, à época adido cultural em Portugal, “…Manuel ia subindo e descendo os carreiros orlados de capim e arbustos. Descia e subia. Subia e descia. Pelos rasgões dos quedes João Domingos notavam-se-lhe calos da geografia daquele bairro de casas de adobe, sob a sombra nocturna ainda em manto de nevoeiro. Por entre frestas das casas, mansamente, raios solares, abafavam a chama dos candeeiros a petróleo. O grito dos galos confundia-se em alternância com a voz de comando dos meninos da OPA a invadir o silêncio orvalhado em ribombantes marchas militares. Encurtava a lonjura, Manuel, passo a passo, que o separava da lavra. Seus pés estalavam raminhos que espantavam pássaros e os chilreios vibrantes em voo chamaram a atenção do velho Zé, madrugador refastelado na cadeira de lona e tinha a casita semeada por entre arvoredo denso e variegado. Com a caneca e a escova na mão a polir os dentes, gritou: -Eu. A cuspir para o chão, endireitava o casaco. Era um velho fino, eivado de preconceitos que passava a vida a gabar o filho seminarista, engenheiro, desaparecido algures na guerrilha da luta de libertação pela independência. Moço alto, Manuel, de figura seca atrofiada pela pneumonia contraída na infância esticara o passo e apertara aquela mão velha de fazer o nó à gravata e costureira da ementa portuguesa para patrões importantes da cidade dos anos 1960 em diante. O velho envolvia Manuel no seu olhar pegajoso, sem desprender o aperto. Ia fotografando as fases sucessivas por que conhecera aquele rapaz, sobretudo do dia em que seu patrão de vinco irrepreensível nas calças e formas distintas dos sapatos, aparecera amarrotado, dizem -continuava intimamente a memorizar e a afunilar a voz como fazia quando falava do filhó-que atraíra seus colegas para o escritório do patrão com uma lista de nomes ordenara o aumento do salário. Dizem – continuava intimamente a memorizar e a afunilar a voz como fazia quando falava do filhó – que atraíra seus colegas para o escritório do patrão com uma lista de nomes ordenara o aumento de salários. Arcaboiço largo daquele homem espadaúdo moía seu ricto desdenhoso, contemplado por glórias fictícias. Duas lágrimas brotaram-lhe da alma e ondularam pelas rugas (…). “Desfolhar as manhãs do antigamente”, título deste texto, é uma metáfora que introduz o conto “Degravata”.