O presente artigo visa analisar a dimensão lírica do conto Para além , Há um político promissor da autoria de Carmo Neto, segundo, na sua obra Degravata (2010), publicada pela União dos Escritores Angolanos.
A comunicação literária é um processo que se dá em duas dimensões fundamentais: ficção e realidade. A fronteira entre essas duas categorias é formal e, em muitos casos, alguns leitores e até mesmo alguns críticos literários que operam ideologicamente no espaço conceptual das teorias de recepção e efeito estético não as conseguem distinguir.
Depois de ser escrito, o texto literário cria uma teia de relações de comunicabilidade que transcendem aquilo que é convencional. Entretanto, é preciso esclarecer que a literatura dialoga com ela mesma e este diálogo se estabelece por via de categorias conceptualmente consagradas. Destas, o conjunto de elementos estruturantes que permitem a funcionalidade do universo diegético, de tal modo que se torna possível falar de relações de verosimilhança com a realidade objectiva. Em virtude disso, com as crenças teóricas oriundas da estética da recepção, no capítulo da comunicação literária, é preciso clarificar que, pragmática e operatoriamente, embora a ficção se espelhem na realidade objectiva, antevendo-se a prior um diálogo, o que é ficcional é ficcional apenas; o autor dialoga com o leitor, e o narrador com o narratário. Importa que assim procedamos para evitar equívocos de vária ordem.
De acordo com Silva (1986), por vezes, o destinatário intratextual identifica-se com um desdobramento ou uma projecção do eu do próprio emissor, originando-se assim uma situação de autocomunicatividade intratextual ; outras vezes, o destinatário intratextual possui uma capacidade semiósica apenas simbólica ou antropomorficamente atribuída.
Ao lermos esta narrativa de Carmo Neto, temos a sensação de termos um narrador que, numa primeira instância, parece interpelar o leitor e não um interlocutor ficcional como é suposto; em seguida, com o avançar da leitura, o entendimento de estarmos perante a um sujeito que projecta a voz para, num jogo de espelhos, falar consigo mesmo:
Você, um exímio dançarino de sungura, semba, samba e tango, sentado na mesa de bar(…), o mais caçula, você sente um profundo desejo natural de harmonia.
Essa sensação dúbia é-nos conferida pela pouca prática de leitura de textos com esta configuração diegética, pois, é comum , em Angola, os prosadores optarem por narradores que anunciam os factos , ora na primeira pessoa (autodiegéticos e homodiegético) ora na terceira pessoa (heterediégético). Por ora, Carmo Neto sugere-nos um narrador que, inusitadamente, embora se servindo do “tratamento formal” que se dá com pronomes e formas verbais de terceira pessoa (você crava, você se recorda), se reporta a uma segunda pessoa. Na Instituição Literatura angolana, no que toca à narrativa, parece constituir lei o facto de os destinatários, na condição de narratário, assumirem uma existência implícita, ou seja, geralmente não há um elemento que permite a sua identificação (pronomes ou nomes) como na narrativa em análise.
Para evitar equívocos, é preciso compreender como Silva (1986) que, o destinatário de uma mensagem é a entidade com capacidade semiósica efectiva ou apenas simbólico-imaginária à qual o autor empírico ou autor textual endereça essa mensagem, ao passo que o receptor de uma mensagem é a entidade com a capacidade semiósica efectiva que, em condições apropriadas, pode codificar essa mensagem.
Por consequência do exposto acima, torna-se claro que esta voz interpeladora que parece examinar o leitor dirige-se exclusivamente para um interlocutor ficcional e este, por sua vez, como construção imaginária, faz parte da estrutura formal do texto, conferindo-o momentos inequívocos de lirismo, muito por conta da ressonância da autocomunicação que traz o narrador-narratário, ou seja, um sujeito que se dirige para si mesmo, originando-se assim, conforme em Silva (1986), “uma situação de autocomunicatividade intratextual” (p. 307).
A narrativa traz como protagonista um ser introspectivo, numa mesa de bar, com indivíduos da alta sociedade, sendo ele classe média, “numa hora de sábado” (Neto, 2010, p.27). Aí começa a ter vislumbres. Parece-nos ser um individuo desanimado com a situação social do país, ao ponto de experimentar momentos de ansiedade que desembocam em pensamento acelerado, por conta da brevidade da exposição dos factos. À memória, vêm as lembranças da infância provinciana, de situações traumatizantes no pós-guerra civil, com gente desconhecida, entre os vinte e trinta anos de idade, amontoados em um caminhão que despertava reminiscências da era colonial ao protagonista:
Quem o visse à distância, observaria a ressurreição do poema “Monangamba”, de António Jacinto. (p.26)
O ponto alto da narrativa dá-se com a introdução do nacionalista que combateu o colonialismo e, no presente, aparece na condição de governante. Este, por conseguinte, está conectado com as cinco crianças que repartiam um feixe de ossos. Carmo Neto, neste sentido, questiona o papel de protector, primeiro, do adulto e, em seguida, do estadista, uma vez que a criança, para desenvolver, precisa de medidas de seguranças estabelecidas pela sociedade adulta, sobretudo pelo governo.
Para além, há um político promissor dos anos setenta, que suturou a boca de tanto clamar pela igualdade do pão. Você o repara, a empanturrar um cão luzido. Beija-lhe o focinho. Limpa-lhe o rabinho e corre com as crianças (p.26)
A atitude introspectiva é, na verdade, o processo de digestão emocional daquilo que foi assimilado, o que fica e o que precisa ser evacuado, o eu em conflito dialéctico-existencial com o mundo exterior. Este paradoxo, que decorre da implicação moral do conceito de nacionalista e da atitude em relação à gestão da coisa pública, constitui o pano de fundo de uma narrativa que condena a degradação das vias de comunicação, a qualidade do ensino universitário, a delapidação do erário, etc., entre outros fenómenos considerados deploráveis.
Ao assentar declaradamente a voz de enunciação sobre um narratário e, por conseguinte, este ser o reflexo do narrador, um holograma; porque a diegese revela a expressão interior do protagonista, seus anseios, sua forma de olhar a vida, suas emoções, seus pensamentos, como se de um sujeito poético se tratasse; pelas opções técnicas que, em certos casos , elide a forma verbal, tornando a leitura mais rápida e expressiva; pela brevidade de certas frases; pelo sentimentalismo presente em toda a enunciação e sobretudo por sua capacidade em sugerir, esta curta narrativa assume uma forte componente lírica e o que aqui escrevemos é uma breve síntese crítica para respeitar o critério de páginas que os jornais normalmente estabelecem.
Neto, C. (2010). Degravata (2ª ed.). Luanda: UEA
Silva A.(1986).Teoria da Literatura (8ª ed.): Coimbra: Almedina.