O conto “O Bairro” encontra-se na obra “Degravata” do escritor angolano Carmo Neto, publicada em 2007. A mesma é composta por 23 contos, e o conto em causa é o 15.º da obra. Propusemo-nos a analisá-lo porque representa uma imagem realista da sociedade angolana, retratando como as desigualdades e o sistema podem interferir nas questões periféricas. O conto é narrado de forma direta, esbanjando a plurissignificação das vivências do bairro.
Embarcando no conto, encontramos um realismo literário que representa um estado próximo à realidade actual, contemplando as várias formas de manipulação e exclusão dos povos periféricos. A indiferença dos nossos governantes perante os bairros tem sido prejudicial para as classes mais baixas. Antes de entrarmos na obra em questão, vamos definir o que é o realismo literário, corrente que tem origem com o movimento realista, que teve início com a literatura francesa do século XIX (Stendhal) e a literatura russa (Alexander Pushkin).

Há vários conceitos sobre o que se pode entender por realismo. Um dos mais antigos remonta dos anos de 1857, do estudiosos francês Jule-Français Champfleury (s.p), que o entende como “um género literário, que tenta representar um tema da maneira mais próxima da realidade, evitando a ficção especulativa e elementos sobrenaturais”.
Para Pedro Pinto (2004)
Realismo é um movimento artístico e literário do séc. XIX, que surgiu por oposição aos excessos líricos do romantismo e ao idealismo classicista. Caracterizou-se fundamentalmente pela sua ligação crítica, mas construtiva, à sociedade: o retorno à objectividade na literatura, em contraposição ao romantismo; o rigor da escrita poética, assente num rigor reflexivo e numa planificação composicional.
Ambas as referências entram em consonância quando dizem que o realismo é a representação da realidade, retratando a sociedade de maneira mais real. Na obra e no conto em questão, encontramos essas particularidades que fundamentam esses argumentos preconizados, argumento que pode ser comprovado com o excerto abaixo descrito:
Víamos o Paciência, um alto funcionário do Estado, a passar e a olhar sem ver, sentimos o bairro lacrimejar as nossas vidas agarradas ao chão, porque o tempo foi o grande ladrão que se esqueceu de deixar o recado para que fôssemos gente (Neto, 2007, p. 79).
Trazendo uma realidade devastadora, relacionada com variadíssimas situações periféricas, o escritor pretende espelhar o comportamento do Estado perante os bairros. A população que lá vive é carente de várias oportunidades que lhe são negadas e, nalgumas vezes, tratada com indiferença. Excluída de uma boa infraestrutura, educação, água e até mesmo de estar incluída na sociedade. Vejamos: “Não parecia ter aprendido a propagandear para a vida ser bela” (Neto, 2007, p. 79).
O conto descreve como algumas entidades periféricas, depois de atingirem um certo grau ou mudarem de posição, esquecem-se de onde vieram ou fingem não ver a situação das suas comunidades. Mostra, assim, como o poder pode transformar um ser para o mal ou para o bem. Vejamos:
Mas foi abrir os olhos e abanar a cabeça, quando dele quis saber o que fazia, e deixar que os meus ouvidos consentissem que o homem era, agora, um empresário de exploração e comercialização de diamantes (Neto, 2007, p. 78).
O engajamento da comunidade nas funções que exercemos seria de autoajuda para as periferias, e quando há divulgação por parte dos que já lá estiveram, há emancipação. Carmo Neto usa um enredo linear para narrar os acontecimentos, tendo um narrador ausente, usando no discurso pronomes, determinantes e formas verbais na 3.ª pessoa gramatical. A narração, quanto à posição, é subjectiva, com uma delimitação aberta. Carmo Neto usa nos seus contos um personagem-tipo para representar ou denunciar os comportamentos ou características físicas e psicológicas de uma classe ou de um grupo social. Podemos constatar esse tipo de personagem no conto “O Bairro”, o conto que nos propusemos analisar.
O conto é composto por quatro personagens, das quais destacamos: Paciência, Splendor, Divua e Mateus. Cada personagem representa um comportamento diferenciado do outro. Focaremos apenas em três personagens. Splendor é um personagem que representa um homem de gravata, bem vestido e todo arrumado, esbanjando a sua vaidade, nutrido de boas maneiras enquanto abusava da sua posição.
Segundo uma heterocaracterização do narrador, Mateus era um jovem com bom físico, que gostava de ir ao ginásio e que, apesar da sua vaidade, evitou que o bairro fosse afectado com a sua atitude. Paciência era um alto funcionário do Estado que ignorava as coisas do bairro, enquanto a comunidade clamava e chorava. Fingindo não sentir e não ver, representava a indiferença de muitos governantes em relação às comunidades.
A inclusão das necessidades das comunidades é bastante pertinente. Carmo Neto descreve como as personagens são moldadas de acordo com o contexto e as influências.
“As casas viviam abraçadas umas às outras e burlavam a solidão” (Neto, 2007, p. 77).
Escondidos entre eles, embora estejam ligados uns aos outros, a necessidade fala por si e clama por auxílio do Estado, facto que parece ser insignificante para o Estado. Neste conto, temos o prazer de enxergar como as influências, arrogâncias e a vaidade são, de facto, um gatilho para o lado mais fraco.
“Mais bem conformado, estava o Splendor, de bolsos alegres, a convidar a tirar utilidade do lapso de tempo com uns cafés e outros etílicos mais anímicos” (Neto, 2007, p. 78).
No excerto acima, demonstra-se como a personagem Splendor estava satisfeita e alegre enquanto o seu bolso enchia, e o bairro sentia a vida agarrada ao chão. Comportamentos do género representam a nossa sociedade actual: o julgamento aos feitos das entidades do Estado, mas, quando nos encontramos no mesmo lugar, não conseguimos impor-nos às certas questões e usufruímos de tudo o que nos é dado, conformamo-nos e negamo-nos a lutar pelos que ainda gritam por uma vida melhor. Usando figuras de linguagem, o escritor brinca com as palavras para narrar os acontecimentos e enquadrar as personagens em situações diferentes, mas ligadas a uma só vida e comunidade.
Referências Bibliográficas
Neto, C. (2010). Degravata (2ª ed.). Luanda: UEA
Champfleury, Jule-Français (1857). O Realismo. Paris: Michel Lévy.
Pinto, P.(2004). O Realismo Português. Escola Secundária Padre António Martins Oliveira de Lagoa http://pedropinto.com/files/secondary/portugues/por2_trabalho1.pdf